quarta-feira, 19 de maio de 2010

Fim de papo?



P.S.: Texto extraído da Revista Vida Simples (edição maio de 2010)



A conversa é a base das nossas relações. Mas em tempos em que a velocidade das coisas nos domina, em que a tecnologia monopoliza nossas formas de comunicação e em que os textos têm pouco mais de 100 caracteres, como fica o bom e velho diálogo? (texto Rafael Tonon) 
Há menos espaço para o diálogo hoje em sua vida?
Oi, tudo bem? Você está muito ocupado agora? Queria ver se tem alguns minutos porque eu gostaria de ter uma conversa com você... Pode ser? Então senta aí, fica confortável. O papo é sério, mas acho que te interessa muito também. Bom, melhor falar logo de uma vez, né?! Sem rodeios, sem firulas... O que eu tenho para dizer – e espero que você não me leve a mal – é que nossa relação está um pouco desgastada. E, quando falo “nossa relação”, não falo só da gente, eu e você, não. Porque, afinal, nem nos conhecemos há tanto tempo assim, né (faz pouco mais de três anos que eu tenho frequentado as páginas da VIDA SIMPLES e cruzado com você em uma ou outra edição). A “nossa relação” que eu digo é a relação interpessoal, os relacionamentos humanos. E esse desgaste tem a ver – e é isso que eu estou tentando dizer desde o começo – com uma crise na nossa comunicação, na nossa dificuldade de dialogar com as pessoas. Pode reparar: vivemos em um mundo em que os povos não se entendem, em que dentro de casa as pessoas perderam a interação, em que colegas de trabalho não conversam sobre as tarefas do escritório e até as relações diplomáticas estão afetadas pela carência de uma melhor comunicação. Enfim, está faltando diálogo!

E, como para nos relacionarmos precisamos conversar com as pessoas e nos fazer entender, essa falta de diálogo está atrapalhando nossos relacionamentos. Afinal, nosso bem estar e nossa felicidade dependem de nós, mas também das pessoas com as quais nos relacionamos e com o mundo em que vivemos. E o diálogo que estabelecemos com esse mundo e com essas pessoas é imprescindível para nossa qualidade de vida. Quando bem-sucedidos, os diálogos nos trazem o entendimento, a compreensão, a troca e a paz de espírito que tanto buscamos. E é sobre essa questão que eu vou falar aqui, na esperança de que isso interesse, entretenha e beneficie você, leitor – que é meu interlocutor nesta conversa que estamos tendo implicitamente, mesmo que você só possa me responder de forma silenciosa. Claro que você não precisa concordar com tudo o que eu disser, mas, só de ouvir o que eu tenho para falar, já tenho certeza de que nossa conversa vai valer a pena.
Sinal de evolução A verdade é que as pessoas têm uma necessidade enorme de se comunicar, de conversar. Falar é uma necessidade orgânica dos seres humanos – das tribos africanas aos palácios ingleses. E essa interação que o diálogo nos propicia é uma característica exclusivamente humana. Outros animais até se comunicam, mas conversar, trocar ideia, isso só nós podemos. Cientistas do comportamento teorizam que passamos 80% das nossas vidas na companhia de outras pessoas e entre seis e 12 horas todos os dias falando com elas. É um tempo considerável, não?
Segundo alguns deles defendem, foi a aquisição da linguagem, aliás, que determinou uma série de avanços para os seres humanos, como a organização da sociedade e o desenvolvimento da nossa capacidade de pensar. “Os homens, unidos com o intuito de se proteger melhor das circunstâncias adversas e resolver suas necessidades, estreitaram seus elos graças à constituição de uma linguagem comum”, diz o psicoterapeuta Flávio Gikovate. Só evoluímos por causa da nossa capacidade de nos comunicarmos – e não o contrário. A linguagem, aliás, antecedeu ao pensamento. Foi o esforço para comunicar palavras que desenvolveu nosso cérebro de tal forma que começamos a pensar. Afinal, precisamos pensar para falar (pelo menos, na maioria das vezes) e nosso empenho para que a outra pessoa nos entenda através de ideias claras também ajuda nosso próprio entendimento. Quando você explica alguma coisa para alguém, você mesmo acaba entendendo melhor o que disse, já que precisa organizar os pensamentos e sentimentos (e não é esse, afinal, o princípio básico da terapia? Dizer a seu terapeuta para dizer a si mesmo?).
Antes mesmo da capacidade de falar, nossos ancestrais já se comunicavam pelos gestos e pelas expressões faciais que faziam parte de seu vocabulário não-verbal. “Ainda hoje o contato físico é a primeira linguagem que aprendemos”, diz Dacher Keltner, professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e autor de Born to Be Good: The Science of a Meaningful Life (“Nascido para ser bom: A ciência de uma vida significativa”, sem edição em português). “E ele continua sendo nosso meio mais rico de expressão emocional.” Keltner liderou estudos sobre essa forma de interação pelo tato e descobriu que ela é capaz de comunicar uma gama ainda mais ampla de emoções que os gestos e com mais rapidez e precisão que as palavras.Hoje, vivemos numa sociedade que dá um peso enorme para as palavras. E, numa época em que nos comunicamos quase que exclusivamente através delas (em e-mails, mensagens de texto, redes sociais), não percebemos que elas não conseguem sustentar uma conversa sozinhas. É claro que as palavras são capazes de revoluções, de mudar os rumos do mundo, de escrever histórias, de narrar sentimentos... Mas não bastam para uma conversa franca.
Muito mais que palavras A conversa tal qual a conhecemos, na sua definição, é aquela que acontece quando duas (ou mais) pessoas estão frente a frente e se falando. Isso porque ela envolve a linguagem corporal, os feromônios que invariavelmente emitimos, os gestos, as expressões faciais, o olhar, o toque. Não é apenar abrir a boca e soltar palavras; é muito mais que isso. “A conversa quase sempre contém informações pragmáticas e expressões puras de emoção. É uma arte humana de grande importância produzida pelas pessoas em todos os cantos”, define o jornalista e escritor Daniel Menaker, autor de A Good Talk (“Um bom papo”, sem edição brasileira), livro que esmiúça a história e a importância da conversa nas nossas relações e que acaba de ser lançado nos EUA. Conversar é uma experiência única, que não pode ser reproduzida. “Nenhuma transcrição, gravação em vídeo, nem mesmo uma ressonância magnética do cérebro pode precisar o que acontece na nossa mente durante uma conversa.”
Pensemos em dois exemplos tirados da nossa música popular – duas canções que ajudam a definir momentos históricos a respeito da conversa, “Conversa de Botequim” (1935), de Noel Rosa, e “Sinal Fechado” (1969), de Paulinho da Viola (veja as letras no site:www.revistavidasimples.com.br). A letra de Noel é uma longa conversa do cliente do estabelecimento comercial com o garçom que o está servindo. Embora a voz do garçom não apareça ao longo da canção, é notável como a voz do cliente é articulada, convida ao diálogo, parece fundada em uma vontade de comunicar. Bem diferente da letra de Paulinho da Viola, em que o discurso é fragmentado, estanque, todo entrecortado. Dos anos 30 ao fim dos anos 60 do século passado, não foram poucas as transformações pelas quais passou o hábito de trocar palavras com outros seres humanos, como atestam essas joias do cancioneiro.
Isso porque uma conversa transcende a questão prática e representa uma das formas mais genuínas de relacionamento entre as pessoas. “Por isso, o principal ingrediente de um bom papo é o despropósito, na mais neutra definição da palavra”, escreve Menaker. Despropósito no sentido de não necessitar de razão específica para acontecer. É algo que fazemos sem esperar ganhar nada em troca e, por isso mesmo, uma boa conversa pode ser tão gratificante e interessante. “Qualquer um de nós não consegue recusar um bom papo. Ou, como diria Agatha Christie, ‘uma pessoa não consegue resistir à oportunidade que a conversa dá a ela de se revelar e expressar sua personalidade’.” Pelo menos quando a pessoa que está na nossa frente vale um colóquio.
Fala que eu te escuto Já para a comunicação assertiva, por exemplo, o diálogo acontece quando estão presentes duas habilidades essenciais da conversação: a escuta ativa e a expressão transparente e verdadeira de suas opiniões, sentimentos e vontades. Ou seja, uma comunicação ética entre o emissor e o receptor, pautada por respeito, tolerância e empatia. Empatia, aliás, é palavra-chave de qualquer diálogo onde haja uma relação emocional e afetiva. Porque o diálogo exige um interesse genuíno pelo outro, de querer ouvi-lo, conhecer o que de novo ele pode oferecer e compartilhar coisas que vocês tenham em comum. “A escuta ativa tem um papel fundamental porque ajuda na transformação do mero ouvinte em um parceiro comprometido com um verdadeiro diálogo”, diz a especialista em medicina comportamental Vera Martins, autora do livro Seja Assertivo. Saber ouvir é uma qualidade rara nos dias de hoje – e uma reivindicação de grande parte da ala feminina, conforme eu tenho escutado (com atenção, juro!) por aí. “Quando sou ouvido, torno-me capaz de rever meu mundo e continuar. É incrível como alguns aspectos, que antes pareciam insolúveis, tornam-se passíveis de solução quando alguém nos ouve”, tascou o psicólogo americano Carl R. Rogers, um dos precursores da psicologia humanista.
Mas, como a conversa sempre depende de duas pessoas, se tem algum para ouvir, é porque tem alguém para falar. E talvez seja nessa tarefa que estejamos falhando mais. A comunicação começa quando expressamos nossas opiniões e sentimentos. O problema é que nem sempre fazemos isso da melhor forma. “Uma pessoa que apresenta um comportamento agressivo, por exemplo, tem facilidade de dizer o que pensa e utiliza uma linguagem direta e reta. E jura que está sendo assertiva. Mas eu diria que não”, afirma Vera. Muita gente confunde saber se expressar com dizer o que tem de ser dito com sinceridade, “doa a quem doer”. E aí se instauram os conflitos. Boa parte das vezes por causa de palavras mal colocadas – e mal compreendidas. Um diz uma coisa, outro entende outra. “Uma pessoa assertiva usa uma linguagem positiva, sem ingredientes agressivos. Busca a cooperação do outro para solucionar um conflito entre eles e cuida para não invadir os direitos do outro e para se expressar de forma franca, mas garantindo que o outro vai entender o que ele quer dizer.”
E essa preocupação vale não apenas para o que dizemos, mas também para a forma como dizemos. “Dizer as palavras certas não basta se você não as diz da maneira certa”, diz Daniel Menaker. “As palavras precisam ser proferidas com a entonação correta, com a emoção que queremos passar ao nosso interlocutor.” É comum uma pessoa fazer um elogio ou um comentário positivo e ser interpretada de forma errada, como se tivesse feito uma crítica. A jornalista Vera Longuini sabe bem como é isso. Autêntica, ela costuma ter sempre opiniões sinceras sobre as coisas. Mas é por causa da sua voz grave e de uma maneira “meio italiana de falar”, como ela mesma define, que acaba sendo mal-entendida. “Sei que as pessoas me acham grossa ou indelicada. Tento me policiar para ser menos direta, menos ríspida”, diz.
Vamos conversar! A principal falha na comunicação está em apontar o problema no outros em vez de interpretar o que ele causa em nós. “Porque é mais fácil encontrar no outro o culpado para nossas divergências, projetar em alguém ou terceirizar a responsabilidade de disseminar o diálogo”, diz a consultora de comunicação Renata Di Nizo. Tenho uma pessoa muito querida (que aqui vamos chamar de Luísa) que viu seu relacionamento terminar por falta de conversa. O marido um dia estourou, disse que não estava satisfeito e que, por causa disso, estava saindo de casa. Ela tentou mostrar a importância de eles se entenderem, mas ele estava irredutível. Foi embora no mesmo dia. “O que mais chateou foi ele não querer sequer conversar sobre uma chance para a relação, de não tentar corrigir o que pudesse não estar bem”, diz ela.
O grande segredo para resolver as discórdias é buscar a solução e não o culpado. Você pode compreender a opinião do outro e pensar diferente.
Mas isso significa discordar do pensamento do outro e não da pessoa do outro (e muitas vezes interpretamos a discordância como uma não-aceitação). “A partir do momento em que as pessoas falam o que precisam, em vez de apontarem o que está errado com o outro, o entendimento aumenta”, afirma Renata. “Ao compreender a importância do diálogo, você assume a responsabilidade sobre sua expressão e
sobre seus relacionamentos.”
Novas tecnologias Se, para estabelecer conversas mais significativas, precisamos reaprender a forma como falamos, imagine quando nos deparamos com meios de comunicação que são totalmente novos. Não é de estranhar que estejamos tateando para fazer ajustes na forma como nos comunicamos por meio do e-mail e das redes sociais. John Freeman, o editor da prestigiosa revista literária Granta, acredita que é a velocidade com que estamos nos comunicando que está prejudicando nossas relações. Como as mensagens, os e-mails, os chats estão cada vez mais rápidos, nós nem sequer damos muita atenção ao que escrevemos. Mal começamos a digitar e logo estamos lá, apertando “Enviar”. Por isso, Freeman escreveu um manifesto a favor de uma “slow comunication” no livro The Tyranny of E-mail (“A tirania do e-mail”, sem edição brasileira). Ele questiona que a conversa real perdeu o território para as conversações online. Falamos com 50 amigos por dia online, mas com quantos deles batemos um bom papo? É isto que Freeman defende que está se perdendo: a importância de prestar atenção no que ouvimos ou falamos, de pensar em cada frase que escrevemos.
Mas é preciso entender que os meios de comunicação podem mudar o modo como nos falamos, mas não vamos deixar de falar por causa deles. “A comunicação é algo muito anterior aos meios de comunicação; eles têm de ser vistos como acessórios, não empecilhos”, afirma a cientista social Heloisa Pait, que pesquisa nossa relação com esses meios. Nós vamos aos poucos aprendendo o papel de cada um deles. “Quando o celular entrou em nosso cotidiano, as pessoas interrompiam a conversa para atendê-lo, como se tivessem ouvido um alarme.” Até que esse aprendizado ocorra há, sim, um grande desafio. “Não é fácil mesmo, estamos aprendendo o que tem sentido e o que não tem. E aí, o que conta não é mais a tecnologia; é nosso interesse no outro”, diz. Essa é a lição que deve ficar para pautarmos todas as nossas formas de comunicação – sejam elas reais ou virtuais. Estamos conversados?
LIVROS Born to Be Good: The Science of a Meaningful Life, Dacher Keltner, W.W. Norton A Good Talk, Daniel Menaker, Twelve Seja Assertivo, Vera Martins, Campus

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